Nos idos de 1950 quase não havia linhas de ônibus, exceção, talvez, para o eixo Rio-São Paulo. O trem "Maria Fumaça" era a nossa condução, lá nas Minas Gerais. Qualquer viagem de 200 km tomava um dia. Essa já era a minha segunda viagem do trem e o nosso destino: Juiz de Fora.
Chegamos à noite e até imagino o desconforto de minha mãe para lidar com três crianças dormindo. Chegamos ao Educandário, escola-internato, local para onde eram mandados órfãos sem assistëncia familiar. A Instituição era mantida pela Fundação Eunice Weaver com a colaboração da sociedade de Juiz de Fora. Destaco as pessoas de Da. Odete Ciampi e de seu pai, Sr. Ciampi, que me levaram à pia batismal da Igreja Católica que ali atuava. Deus os abençoe, onde estiverem, e, também, a todos que, ainda hoje, levantam as suas mãos para proteger e acarinhar os menos favorecidos.
Fui acordado e levado por pessoas estranhas para um banho. Diante dos apelos para estar com minha mãe, informavam que ela logo voltaria e ficaria ao meu lado. Meninos e meninas dormiam em dormitõrios separados, assim, nem o conforto da mão amiga das minhas irmãs, que deviam estar passando pelas mesmas decepções.
Sobre a minha mãe voltar pela manhã, era mentira., só voltaria a ver a minha mãezinha cerca de dois anos depois e, ainda, por apenas uns poucos minutos. O meu pai só voltei a vê-lo cinco anos mais tarde, ao deixar o colégio interno, quando já nem me lembrava da sua fisionomia.
Quando acordei naquele lugar estranho, cercado poe pessoas desconhecidas, quase todos indiferentes à minha presença ali, eu pensei que ia morrer de tanta tristeza e de tanto chorar.
Durante os primeiros dias, quando ainda podia estar com minhas irmãs, durante o dia, saíamos para os lugares mais distantes para estarmos a sós e chorarmos o quanto nos desse vontade. Ninguém se importava.
Se a terra se abrisse e eu caísse dentro não teria sido maior a minha tristeza! Imagino o que sofreu Eulina, irmã mais velha, na época com 10 anos, tendo que tentar acalmar os irmãos menores, sendo ela, também uma criança, que nem sabia que estava sendo deixada, quase abandonada, em lugar tão distante de casa. Havíamos viajado um dia inteiro de trem e chegamos à noite ao destino - o Educandário Carlos Chagas, em Juiz de Fora.
Não houve momentos de despedida, apenas uma entrega formal de crianças adormecidas. Nem posso imaginar a dor de uma mãe que entrega todos os filhos, sem direito de visitá-los normalmente.
A primeira semana ali foi de puro choro e sofrimento. Até hoje, ao relembrar, me dói o coração. Parecia que o mundo tinha se acabado para nós. Para piorar, agora ia ser separado das minhas irmãs, também durante o dia.
Como dizem não há bem que sempre dure e nem mal que nunca se acabe.
A tristeza passou ou, pelo menos, foi recolhida para o fundo do coração. As aulas, as brincadeiras e a disciplina imposta logo criaram um novo roteiro para as nossas vidinhas.
De repente, uma nova normalidade. Todos brincavam e ninguém se referia aos pais ou parentes. Até, porque, muitos chegaram ali bebês e pouco ou nada sabiam de suas origens.
Vida que segue. O colégio era tipo colégio agrícola, com muita área rural, onde nós até aprendíamos a lidar com tarefas de agricultura e pecuária.
Lá pelo interior menino se espalha e só inventa artes. E nós tínhamos muito espaço naquele colégio, com morros para subir e descer e, até a possibilidade de se esconder debaixo de um pé de frutas, carregadinho. Apenas o perigo era o limite para as nossas travessuras. Limite nem sempre respeitado e com as consequências esperadas: pé torcido, braços ralados, cabeças “quebradas” e unhas arrancadas aos tropeções. No final, todos sobreviviam, depois de algumas paradas, forçadas, na enfermaria.
Minha primeira e única professora do curso primário, chamava-se Therezinha Marcos Perez. Faço questão de mencionar todo o seu nome como uma maneira de agradecer o seu carinho, recheado de beliscões ou reguadas, sempre que não sabíamos as respostas certas para as questões de matemática, geografia, historia e português. Esse procedimento era normal naqueles tempos: Muito obrigado, Da. Therezinha, por todo o conteúdo colocado dentro da minha cabecinha, aliás, uma cabecinha que só desejava que a aula acabasse para jogar futebol com a molecada. Obrigado, também, pelo gosto pela leitura, hábito adquirido naquelas aulas de toda sexta-feira, as melhores para mim.
Aprontávamos o quanto podíamos e apanhávamos o quanto merecíamos. Talvez um pouco menos do que merecíamos, já que algumas “artes” nunca foram descobertas.
Eu fico pensando em quantas histórias haveria para contar vividas em apenas cinco anos de internato. Histórias tristes, histórias alegres e, entre elas, muita coisa interessante da vida de menino. Algumas, até já contei nesse blog, como: O Corredor Polonês e O dia em que Recebi a Extrema-Unção.
O batismo, a primeira comunhão e a crisma eram sacramentos obrigatórios para todas as crianças, dentro dos padrões da fé católica ali adotada. A confissão era a parte mais difícil. Ali, éramos todos católicos e sujeitos a rezar os terços e as novenas previstas pela igreja. O medo do inferno, além de grande, era sempre reavivado pelos adultos dirigentes, até como forma de conter o ímpeto da molecada.
Recebíamos o necessário para a sobrevivência. Só me lembro de que sofria de fome crônica, onde houvesse algo para comer, sujo ou limpo, eu comia.
Feita a contabilidade de prós e contras e, descontado os dias iniciais da nossa estada ali, posso afirmar que foram cinco anos felizes da minha vida. É preciso dizer que, nesse período, eu nem lembrava mais de como era viver com parentes, em família.
Aos meus doze anos, a família acabou reunida novamente, agora no Rio de Janeiro, quando conheci, de novo, o meu pai.
Foi difícil retomar o regime austero de uma família crente evangélica, onde não se podia quase nada, quer por morar em uma favela horizontal, quer pelas proibições religiosas e, somando-se a isso, havia a dificuldade econômica, muito braba.
Só não entendia o porque do ditado mineiro que a minha mãe sempre repetia... Filho Criado, Trabalho Dobrado...
Se me animar, depois falo mais dessa saga de viver...
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